Hospital do Rim de Guanambi

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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O Vestido da Vida




Era um senhor diferente, não como os outros que ali estavam.
Era um senhor de mais ou menos uns sessenta anos de idade. Para mim, um eterno adolescente em sua expressão mais pura de ser. Seguia seus dias sempre sorrindo e contando brincadeiras.
Quando adentrei pela primeira vez naquele local, o tão temido salão de hemodiálise, foi ele quem logo me acolheu. “Ôba, mais uma gatinha para se sentar ao meu lado, pronto mais um motivo para ser feliz, Êta felicidade que me acompanha tanto!”
 Essas foram as primeiras frases dele. Eu, com os meu quase cinqüenta anos ser chamada de gatinha. Nossa! Por um instante senti minha auto estima alcançar níveis que até então estavam tão longe de acontecer. Vivia tão entristecida devido ao meu tratamento; e ainda sabendo que minha vida iria modificar por completo: viagens e mais viagens, punções, dores, medo... Naquele momento parecia que a alegria daquele senhor irradiou todo o meu ser e senti como se não estivesse prestes a ser ligada a um aparelho e sim, prestes a adentrar em um mundo de muita felicidade.
Durou por pouco tempo. Logo quando “a ficha cai” vem junto o desespero. A vontade de fugir e de sair correndo daquele local. Meu Deus! O que estou fazendo aqui?! Essas foram constantemente minhas falas e pensamentos.
Dia após dia aquele senhor sempre tentava me animar, contava casos, piadas; dizia que já namorou até trinta mulheres... Confesso que no início achei-o meio atrevidinho, um “velho tarado”, mas admito que foi por pouco tempo, apenas o tempo de conhecer um pouco a história daquele homem que exalava vontade de viver.
Logo de início eu percebi que lhe faltavam três dedos em uma das mãos. E ele me disse mais ou menos assim:
 Deus deu esse “gancho”, os dois dedos que restaram, para saber agarrar o enorme vestido branco da vida.” (Caindo na gargalhada ele compara a vida como uma bela mulher, a mulher dos sonhos dele e ao qual ele era perdidamente apaixonado).
Disse que sempre sabia que ela existia, mas nunca dera o valor suficiente para cortejá-la até o momento em que alguns fatos inusitados ocorreram na vida dele. Primeiro uma série de problemas de ordem familiar o desestruturou por completo; depois uma crise financeira que abalou os alicerces do que ele estava acostumado a viver; em seguida o terrível acidente que houvera extirpado os seus três dedos; para finalizar, a doença renal crônica. “Tudo isso ao mesmo tempo! Foi uma provação. Tive vontade de acabar com todo aquele sofrimento várias vezes, mas algo, bem pequenininho, me chamava para uma reflexão maior. Pude perceber que via, porém não enxergava a vida. É engraçado (disse depois de uma pequena pausa), que quando digo que esses dois dedos que me restaram foi o gancho que me serviu para segurar o longo vestido da Vida para, a partir de então, e pedi-la em casamento  - fique comigo essas noite, e não arrependerás jamais (cantarolou um refrão de uma música muito familiar para ele). Foi no momento em que eu estava no salão de hemodiálise, com a mão enfaixada é que pude notar que faltava a capacidade de enxergar as coisas de maneira diferente. Por exemplo, não possuía mais os dedos, mas EU continuava existindo. Continuei a olhar o que perdi a partir de então e comecei aperceber o quanto EU me tornava mais presente até o momento em que, mesmo me faltando tudo, a minha presença no mundo se faria cada vez mais forte!
Eu me tornara um colosso! Acabei por perceber que não havia necessidade de se ter para ser, e que quanto mais importância eu dava para o ter, mais eu me desfazia como pessoa, como indivíduo. Desde então, comecei a perceber os caminhos maravilhosos que poderia trilhar se eu cultivasse a minha individualidade como ser único que sou! Apesar das dificuldades, continuarei a existir como pessoa sempre, e creio que eternamente, pois tenho certeza que meus exemplos ficarão em algum lugar ao qual me eternizará. Quem sabe ficará em teus ouvidos?! Disse isso olhando fixamente para mim.
Fui transferida para outra clínica em outra cidade. Nunca mais vi aquele senhor. Hoje recebi a notícia de que ele havia falecido. Senti vontade de chorar. Senti que o mundo perdera um grande filósofo da vida.
Em meio ao desespero, foi como ouvisse a voz dele, o timbre, o sotaque a entonação... tudo. E essa mesma voz que nascia em minha memória dizia: “por mais que difícil seja a tarefa a ser cumprida, lembre-se de que quem esta cumprindo essa tarefa é uma pessoa, um indivíduo, um ser que está por deixar a sua marca no mundo; como o escultor que segura firme o cinzel, deixará para sempre a sua marca na escultura que o eternizará. Eu me casei com a Dama da Vida, e os nossos filhos são os nossos exemplos eternizados talvez nos ouvidos de alguém,”.
 Refleti, recompus-me e segui adiante tentando também agarrar a Vida para me casar; lembrando que para mim, a Vida é um belo homem, seu segundo nome é Felicidade.
Roberto Harrysson Braga Tolentino – História baseada em fatos reais.
Guanambi, 06 de outubro de 2011